Festas são locais bem propícios para cometermos erros, é até de se pensar que elas sejam projetadas para este fim, música alta, ambiente em meia luz, multidões de conversas ao redor, álcool. Ambientes mais sóbrios também possuem o poder de distorcer as nossas percepções, uma pessoa em cargo de chefia, uma amiga de profissão, um professor, uma dentista…
O cotidiano da vida nos leva a cruzar e conviver com uma infinidade de personagens que flutuam em nosso entorno. Em um encontro inesperado de garagem o destino deles se cruzou, o acaso sempre trabalhando de formas inusitadas, ele correndo na calçada e ela saindo para encontrar os amigos, ela no banco do carro e ele no capô subindo rumo ao para-brisas, ela o atropelara por volta das 19h, por sorte nada grave aconteceu, mesmo sem culpa ele se ofereceu para arrumar o carro amassado, nisso trocaram telefones.
Passaram-se 9 anos, entre o primeiro e o último beijo, ela de independente, livre e feliz, se tornou a esposa e mãe de um casal, aquele mundo, foi melhor dos mundos para ela por muito tempo, até que as primeiras frustrações começaram a aparecer, seu corpo já não era mais o mesmo, o do marido nem se fala, o dinheiro para 4 não rende da mesma forma que para um casal no início da vida. Crises, desilusões, uma maré de desentendimentos domésticos inconciliáveis.
Ela já não se sentia mais dona de si, se perdera em meio suas obrigações de mãe, no seu papel de mulher, desencontrou-se da sua identidade, há tempos já não era mais a sua própria prioridade, esqueceu de se amar por amar demais o que era pra ser amado em conjunto.
Nova casa, novo bairro, nova escola das crianças, agora eram apenas 3 os habitantes daquele lar, guarda compartilhada, sem o pai no dia a dia as tarefas já não podiam mais ser divididas, as crianças maiores podiam suprir a falta do pai com a independência desenvolvida, mas à noite o espaço da cama era um abismo gélido e escuro, sem gemidos, mordidas no pescoço, respiração ofegante no ouvido, faltava a pressão dos cabelos de sua nuca sendo puxados de maneira dolorida e prazerosa ao mesmo tempo, faltava o ardor dos tapas desferidos em sua bunda. Este vale de desinteresse já era vivido desde quando ainda ao seu lado havia a companhia de um corpo masculino, que pouco restara de intimidade,  a visão era da rotina massiva do convívio matrimonial que deixaria sexagenários entediados de viver tanta monotonia sexual.
Entraram em modo automático, a libido, o furor do desejo, a fugacidade de pensamentos impróprios fora substituídos pelo despertador das 6h até a oração de boa noite no quarto das crianças, um beijo na testa era o clímax mais quente antes de passar pela provação de mais uma noite de roncos. Aqueles capítulos que os filmes de comédia romântica não mostram, que os os contos de fadas omitem, que você nunca verá em um comercial de margarina. A parte cinza da vida, ali, mergulhada em pensamentos negativos, cogita como seria o seu destino caso o rapaz outrora atropelado caísse do carro de cabeça e não resistisse ao impacto. Ela sorri de si mesma, e logo recobra a sanidade. Sorriso, algo que lhe faltava ser experienciado do fundo do mais profundo do seu ser, aquilo que colore os dias e perfuma a alma, aquela sensação que vale muito a pena ter vivido até aqui. Dali em diante, decidiu desligar-se do passado e reconectar-se com a sua versão que estava muito viva no presente, é hora de se permitir encontrar alguém, sacodir a poeira, o ideal seria um novo amor, mas precisaria de mais desprendimento, abrir-se para o que pudesse resgatá-la da solidão e colorir a cinzetude que eram os seus dias, um simples lance não estava descartado, como é mesmo ser solteira? Indagava-se já sabendo a resposta.
Na segunda depois de deixar as crianças na escola, seu primeiro compromisso foi com uma nutricionista, depois salão de beleza, incorporou atividades físicas regulares na sua rotina, fez novas amizades, frequentou novos ambientes, 3 anos se passaram, ainda solteira, com mais autoestima, confiança de alguém que aparentava nunca ter tido um só problema em sua vida.
Mesmo sem encontrar seu novo amor, ela despertou com um estalo em sua mente, aquele raio que descarrega um turbilhão de energia na mente, que clareia anos de escuridão, ali ela despertou de um longo e profundo sono, foi lá que ela se viu, viu-se em um espelho de reflexo reluzente, lá estava o seu verdadeiro amor, lá dentro estava tudo o que ela sempre precisou, tudo o que ela sempre quis, era ela mesmo, uma versão desconhecida de si, o reconhecimento das suas mais singelas e profundas potencialidades, recordara do quanto ela era especial pra si, o quão era negligenciado o amor próprio, a atenção de priorizar-se, de não esvaziar-se, preenchendo-se com culpa de não se sentir tão boa para o mundo, para os filhos ou até pela insegurança de imaginar que não é tão bela aos olhos de um desconhecido qualquer.
Muitas são as que vivem como estranhas de si, outras fecham os olhos e param de se enxergar, preenchem espaços que são apenas delas, com atividades e opiniões de outros e do mundo, carregam em seus ombros um peso de responsabilidades que não lhes pertence, tentam suprir expectativas de um mundo ideal.
O processo de conhecer-se é algo tão profundo, que até caso alguém punha um tecido à frente do espelho, já não é mais necessário aquele reflexo para saber o que ele irá refletir, a consciência amadureceu o suficiente para se desvencilhar da clausura das aparências. O valor deixa de ser a imagem, deixa de ser o que o outro quer enxergar e passa a ser o que ela quer deixar ser visto, ela começou a irradiar-se, ela disse pra si: é um prazer te conhecer todos os dias!